quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Dejetos e rotina de estupros no cotidiano do Haiti

Ao desembarcar no pequeno país de pouco mais de 9 milhões de pessoas, o sinal das companhias de telefônicas com os dizeres "bem-vindo ao Caribe" não retrata em nada o cenário de devastação que tomou conta da pequena ilha do Haiti um ano depois do terremoto que a assolou em 12 de janeiro de 2010.
 
No aeroporto internacional Toussaint L'Ouverture, os escombros ainda mancham a paisagem empoeirada. Mais de 20 milhões de metros cúbicos de restos de construção - volume suficiente para encher 8 mil piscinas olímpicas - disputam espaços com dejetos, porcos e uma população maltrapilha de 1,5 milhão de desabrigados e desalojados.
 
Um ano depois da pior tragédia natural registrada pelas Nações Unidas desde sua fundação, em 1945 - e que matou cerca de 230 mil haitianos e estrangeiros - o Haiti permanece sob instabilidade política, sem nenhum tipo de instituição sólida e refém de ações humanitárias de organizações não-governamentais, doações sem regularidade e de soldados de uma entidade - a Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (Minustah) - criada em 2004 para lhe tentar colocar rédeas.
 
A segurança local depende primordialmente dos militares estrangeiros da Minustah - 8,5 mil deles trabalham para manter a "paz, estabilidade e segurança" da população e treinam a pequena e instável Polícia Nacional do Haiti (PNH). Foi este contingente de policiais haitianos que, se não dizimados pelo terremoto de 2010, ajudaram a incitar a população de Cité Soleil, maior favela da região, a fazer justiça com as próprias mãos e garantir que os donativos recebidos da comunidade internacional não fossem roubados uns dos outros.
Os estupros são recorrentes nos acampamentos de desabrigados. Mais de uma família divide o mesmo barraco de lona de acampamento, homens e mulheres de todas as idades se banham juntos nas ruelas de pedregulho. Vítimas dos abusos, as mulheres são inibidas de procurar socorro da polícia local, que pode ser a próxima algoz de sua intimidade.

Subnutridos e com o menor Índice de Desenvolvimento Humano das Américas, os haitianos ora recebem doações nos campos de sem-teto ora recorrem à cozinha do inferno - apelido dado ao mercado municipal Les Salines - como sua principal fonte de alimentação. No mesmo ambiente disputam espaço porcos, cabras, crianças carentes e um sem-número de vísceras frescas que formarão, assim que abatidos os animais para a refeição, fogueiras mal-cheirosas por todo o ambiente.
Para chegar ao Les Salines ou conseguir uma doação das centenas de ONGs que atuam em Porto Príncipe, os haitianos recorrem aos "tap-tap", veículos com carrocerias coloridas improvisadas que transportam dezenas de passageiros em baixas condições de segurança e lotação acima de qualquer limite imaginável. As raríssimas placas de trânsito são ignoradas solenemente por toda a população, que recorre, via de regra, ao buzinaço como linguagem universal para consolidar o princípio básico do ir e vir.

Desde o início da missão dos militares da Minustah, o Haiti já passou por ameaças de revolução, embates entre soldados e gangues resultantes de milícias e, nos últimos tempos, não tem deputados com mandatos ou um quadro de senadores completo. Ainda que com avanços modestos, registro civil, registro de terra, direito à propriedade ou marco regulatório para negócios são metas em um horizonte um tanto obscuro para a população que foi a primeira a declarar o fim da escravidão de negros, em 1804, mas que até hoje parece imersa em um filme de terror.

Fonte: Laryssa Borges - Portal Terra

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